quinta-feira, 26 de março de 2009

Camping na Cachoeirinha: 30 horas no Largo do Japonês

Conversamos, comemos, dormimos, jogamos dominó, baralho, dama e varremos a praça. Aquilo que experimentamos foram encontros. Conversando com os outros artistas do corrosivo percebi que ao criarmos esta ação nenhum de nós imaginava a dimensão da experiência que passaríamos.

Chegamos às 6h30 da manhã. O movimento ainda era pequeno nas ruas da Vila Nova Cachoeirinha e estava um pouco frio. A primeira coisa que observamos foi a quantidade de lixo que estava espalhado pela praça.
"Como as pessoas podem freqüentar um lugar tão sujo como este?", perguntei a mim mesma.
Começamos a varrer o espaço escolhido para colocar a barraca e demos início ao acampamento. Logo em seguida, Carolina foi conversar com o PM responsável pelo plantão da unidade do Largo, avisando-o sobre o nosso trabalho.
"Será que existem PMs que dialogam com os habitantes da cidade, compreendendo uma manifestação artística e se tornando parceiro desta ação?". A resposta da Carolina foi "Sim. Eles foram extremamente solícitos e nos apoiaram." e meu preconceito teve que dar lugar a um novo olhar quando este mesmo PM veio até a nossa barraca oferecer um café.
Não explicitarei o nome de nenhum PM aqui pois, os que atrapalharam o nosso trabalho não merecem ser citados e os que foram parceiros podem ter problemas com o próprio sistema.
Aos poucos o movimento começou a aumentar, o sol já começava a esquentar e as pessoas começavam a circular pelo Largo. Quase todos olhavam, mas só os que conseguiam coragem se aproximavam e perguntavam o que estava havendo ali. Alguns tiveram que passar três ou quatro vezes antes de começar um diálogo conosco. As pessoas tinham as mais variadas opiniões sobre o objetivo do nosso camping, mas a maioria imaginava que não tínhamos casa e que por isso decidimos ficar na rua.
"Nós estamos acampando aqui porque nos disseram que no bairro existe uma cachoeira. Por isso o nome Vila Nova Cachoeirinha. Nós estamos procurando ela. Você sabe onde fica?". Esse era o inicio da nossa conversa.
Moradores de rua, um senhor com mais de 100 anos, crianças de 7, mulheres atrasadas para ir ao trabalho, jovens ativistas, artistas, policiais militares, donas de casa, desempregados.
Cada um deles fez essa experiência se tornar única e inesquecível.

O meu primeiro questionamento do dia foi respondido no início da tarde.
As pessoas, que lotavam as mesas de jogos espalhadas pelo largo, ao verem a Carol varrendo a grama da praça insistentemente e sem dizer uma palavra, pegaram a vassoura da sua mão e em rodízio começaram a varrer o chão e a comentar como aquilo sempre os incomodou.
Eram todos homens, com mais de 50 anos. Me pareceu que outros tantos preconceitos foram rompidos naquele instante.
Um deles era O Sr. Isaias, 101 anos completados em dezembro passado.
Depois de provar sua saúde e força ao levantar o Edson no colo, contou sobre sua vida. Falou sobre seus amores, trabalhos, chegada ao Brasil. Filho de italiana com alemão, português de nascimento chegou aqui fugido da primeira Guerra Mundial.
“E o Sr. Chegou a trabalhar nas indústrias Matarazzo?” perguntei a ele certa de que ao menos conhecesse o Império Matarazzo, um dos poucos na São Paulo do começo do século.
“Ah! Trabalhei, mas foi naquela da Água Branca”, respondeu sem esperança que essa informação pudesse nos interessar.
Edson ficou olhando com a boca aberta, Carolina teve um ataque de riso e eu, muito emocionada, tentava obter mais informações.
Vale dizer que o Corrosivo tem entrevistado antigos operários das Indústrias Matarazzo para o Projeto Olhares entre Caldeiras (corrosivo-olharescaldeiras.blogspot.com) e tínhamos na nossa frente alguém que começou a trabalhar lá apenas um ano depois de sua inauguração.

A essa altura do dia o tempo já havia se estendido e eu não conseguia mais, como de costume, saber as horas sem olhar no relógio.
E descobri que eu sei as horas muito mais pela quantidade de tarefas realizadas ao longo do dia do que pela luminosidade incidida sobre a Terra como os nossos antepassados sabiam.
Depois da conversa com o Sr. Isaias me pareceu ser 17h ou 18h horas, mas eram apenas 14h30.
Foi a primeira vez, desde o início do acampamento, que sai dos limites da praça, pois precisava comprar arnica para o meu quadril, que a essa hora, já gritava, pedindo atenção e carinho. Foi estanho sair do Largo. Já fazia parte daquela paisagem e ela de mim. Voltei logo e sem achar a arnica, fui descansar um pouco para aliviar a tensão do corpo. Embora nessa hora do dia o som da cidade estivesse no seu auge, dormi como se estivesse em casa.

Muitas pessoas riam ao saber que estávamos lá a procura da cachoeira perdida. Outros emendavam com uma boa conversa que levava algum tempo para se dissolver na correria da cidade.
Muitas histórias, memórias reais, outras criadas naquele instante, reflexões, indignações, curiosidade.
O Rafael, que não devia ter mais de 7 anos, sem sair de sua bicicleta e eu, com quase 30, sem sair de dentro da barraca, nos encontramos no final da tarde.
“O que você está fazendo aí?”
“Acampando! Vim procurar uma cachoeira que existe aqui neste bairro”
“Não tem cachoeira aqui”. Foi um dos que tiveram mais certeza ao me dar esta informação. O tempo das cachoeiras e montanhas descobertas por concreto estava realmente longe da sua memória.
“Mas existia, sabia? Aqui onde estamos tinha um poço natural e a água da cachoeira vinha de lá de cima. Seu avô deve ter brincado aqui quando tinha sua idade”
“Eu não tenho avô!”
“E pai?”
“Tenho”
“Então pergunta pra ele”
“É mesmo... vou perguntar... Se você achar a cachoeira você me avisa?”
“Claro! E se você achar antes de mim, você me avisa?”
“Sim” E foi embora.
À noite, o Sr. Urbano voltou com a família toda para continuar a limpar o gramado.
Chegou também o pessoal do Centro Cultural da Juventude para nos acompanhar ao longo da noite, na vigília, na hora do conto, na fogueira, nos jogos.

Recolhemos madeiras espalhadas pela cidade. Sr. José, um dos moradores do Largo, estava nos ensinando a fazer o fogo quando outros PMs, diferentes dos da manhã, nos proibiram de fazer uma fogueira.
Chegaram com armas na mão, nos interrogaram, queriam saber quem era o responsável.
“É você?”
“Eu não! Todos aqui são maiores! Mas isso não importa. O que importa é o que estamos fazendo aqui!” Depois de 5 minutos falando sem parar sobre o projeto, percebi que nem um dos dois me olhava. Olhavam pra frente, para o infinito. Aquilo me deixou perplexa, me posicionei na frente deles.
“Vocês não vão olhar pra mim quando eu falo com vocês?”
Vocês devem imaginar que todos os argumentos utilizados por nós não serviu para estabelecer qualquer diálogo um pouco menos Kafkiano com eles.
“Vocês vão incomodar a ordem com essa fumaça. Alguém vai ligar para 190 e nós teremos que vir aqui pra impedir a fogueira.”
“Então vocês resolveram vir antes de alguém reclamar! E se ninguém reclamasse? Vocês não teriam poupado esse tempo? Não teriam deixado a gente continuar com o nosso trabalho?”
A praça estava vazia, com exceção de nós mesmos.
“O que queremos é exatamente isso: conversar, compartilhar leituras e o calor da fogueira. Sei que você entende o que estou dizendo, mas existe algo que não te deixa romper essa barreira.” Um deles já olhava pra mim e parecia até que seus olhos estavam emocionados.
“Você é autoridade. Não faremos a fogueira, mas leve meu protesto e meu desacordo. Só não faremos porque você manda aqui mas não deveria ser assim”
“Não é bem assim!”
“Não? E como é?”
Se foram mas não sem antes anotarem meu nome e rg, caso nós quiséssemos continuar a quebrar a ordem da cidade.
Esse encontro virou poesia, música, história.

As 4h da manhã todos foram dormir. No total 7 pessoas em duas barracas.
As 6h da manhã alguns de nós foram acordados com uma batida entre dois carros no cruzamento em frente ao Largo. Alguém se machucou da mesma forma que eu há 2 anos e meio atrás. Senti uma fisgada no quadril. O resgate veio em 10 minutos. Bem na hora da troca do turno dos PMs do Largo.
Tomamos café, brincamos com o Pirata e com os outros cachorros da praça, conversamos mais um pouco, mais pessoas se aproximaram.
Leandro, o gari do Largo perguntou se juntávamos latinhas de alumínio.
“Se vocês não juntam, vou deixar no carrinho daquele senhor. Alguns garis juntam, mas eu não acho justo. Nós temos o nosso fixo, eles nem isso” e me emprestou um pano para limpar a barraca, que mais tarde fui saber que era o que ele usava pra proteger a nuca do sol.
Ele continuou a varrer a praça enquanto nós desmontamos nosso acampamento e partíamos em direção a cachoeira.
Uma das frases que mais nos influenciou na hora de escrevermos este projeto para o Centro Cultural da Juventude foi a de David Harvey “ a liberdade da cidade é, portanto, muito mais um direito de acesso aquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações(...)”
Embora tivéssemos tido problemas em ocupar plenamente o espaço que é público, pudemos fazer destas 30 horas aquilo que mais desejávamos: encontrar o outro.

Agradeço a todos que estiveram conosco: os que acompanharam a distância, os que passaram algumas horas, alguns minutos, os que apenas passaram e aos vigilantes que, numa noite fria de outono, tiveram o desejo de permanecer no Largo da Vila Nova Cachoeirinha.

Por Renata Ferraz

Um comentário:

TEATRO PARABELO disse...

Que experiência maravilhosa!!!
Saudades de vocês!
Um grande abraço!
Eliane Andrade.